quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Capítulo I – Ep. 3 – A Cidade Sagrada

Assassinar um papa... A primeira vista não parecia um grande desafio para alguém do ‘porte’ de Abbadon assassinar um simples velho. Outros papas já foram assassinados por métodos convencionais antes daquele, isso em uma época em que anjos e guerreiros sagrados faziam do mundo sua segunda morada. Nos tempos atuais, em que pouco ou nada de bom habitava o ‘mundo dos mortais’, a missão do anjo caído não parecia de todo dificultosa.

- Parado aí! – um homem gritou.

Abbadon acabava de cruzar o portal e estava no centro da cidade do Vaticano, aparecido como por mágica. Inúmeros turistas passeavam pelo local, diante de maravilhosas construções repletas de colunas e imagens religiosas. Em meio à beleza daquele lugar, contrastava agora a figura sombria do anjo caído. Seus cabelos negros caindo sobre o rosto deixavam evidente apenas um sorriso branco de caninos selvagens enquanto uma linha púrpura se estendeu do seu dedo indicador, agora apontado para o homem que gritou em sua direção.

A linha púrpura partiu da longa unha negra de Abbadon até o centro da testa do homem, um pobre guarda, que então teve o seu crânio implodido, desaparecendo em uma pequena massa de carne e ossos. A força do pulso cardíaco, ainda patente, fez jorrar aos céus uma coluna exagerada de sangue tão admirável que deu pausa ao sorriso cruel do assassino.

Diante da cena brutal de violência súbita, os turistas e guardas gritaram desesperados. Crentes que aquela figura de longos cabelos negros e pele pálida como a dos mortos tratava-se do próprio Satanás, correram desordenadamente para lá e para cá, enquanto desdenhoso o anjo negro caminhava lentamente até a Praça de São Pedro.

Alguns corajosos soldados do vaticano orientaram os turistas e visitantes locais para abrigos que julgavam seguros, longe dos olhos daquele demônio. Outros, ainda mais obstinados, abriram fogo contra Abbadon, gritando por seu Deus e amaldiçoando fervorosamente a criatura.

Tudo aquilo era em vão...

Antes mesmo de entrarem em contato com o corpo da sombria criatura, as balas explodiam em fagulhas de luz negra. Logo, incomodado com o barulho e a temerosidade dos homens, Abbadon abriu as mãos e pequenos círculos negros se formaram aqui e ali, vomitando pequenas, porém vis, criaturas vindas do abismo.

Cobertas de espinhos e garras, as criaturas tinham bocarras enormes, desproporcionais ao diminuto corpo que não era mais impressionante em estatura do que o de uma criança de cinco anos. Porém, rasgando a pele vermelho escura, músculos rígidos como pedra e estacas de ossos davam um aspecto feral às figurinhas, que agora começavam a brotar daqueles buracos negros como uma verdadeira legião.

Os diminutos demônios, às centenas, passaram então a invadir as construções ao redor, saltando sobre os turistas e arrancando-lhes carne e ossos com suas presas cheias do ódio. Gritos de morte e agonia inundavam a imensidão da Praça de São Pedro, e os pedidos de socorro se calavam com engasgos prévios ao silêncio da morte.

Temeroso, Abbadon arrebentou o portal do Palácio Papal, certo de que a sua missão logo chegaria ao fim. Qual seria o sabor da alma de um Papa? Certamente Lazarus Grimm jamais havia devorado alguém como aquele homem, visto como o mais santo dentre os pecadores. Ele desejava a cabeça do papa para poder se deliciar tanto de sua alma, quanto das informações tão preciosas guardadas em seu encéfalo...

- Se o UM ainda estivesse presente, acha mesmo que ele permitiria tal atrocidade? –Abbadon riu, após dizer tais palavras em meio ao grande saguão do palácio, sem dirigi-las a qualquer um senão ele mesmo.

- Ah, mas ele está criança... – A voz do homem idoso rezou pelo salão, e de colossais portas duplas surgiu o homem franzinho, já no alto dos seus 80 anos, trajando as vestes cerimoniais daquele que era o representante maximo da igreja católica no mundo mortal. – Ele está entre nós.

- Há! – O anjo caído olhou com deboche. Aquele era o homem santo? Não estava impressionado... Roupas de fino tecido, ouro, jóias e fé cega. O velho estava cercado daquilo que no mundo era considerado Poder. Mas não era aquele poder mundano que Abbadon respeitava. – Pobre velho iludido.

Pronto para separar do corpo a cabeça do homem santo, Abbadon mais uma vez ergue seu indicador. Precisava preservar o Maximo da caixa craniana daquele homem quanto era possível, pois qualquer dano no encéfalo poderia representar perda substancial de informações. Em uma prece negra, ele murmurou com sua voz espectral, evocando mais uma vez a magia proibida que agora sustentava o que restava de seu poder.

- Ora, anjo caído... Não pense que suas bruxarias terão efeito sobre mim. – O velho então ergueu sua mão em um gesto calmo, com uma tremedeira sutil de seus dedos enrugados e grossos. Ele então colocou o indicador sobre os lábios como quem silencia uma criança, e os murmúrios de Abbadon cessaram.

Surpreso, o antigo anjo negro tentou protestar, mas sua voz não pode ser ouvida.

- Ah, anjo negro! Assim como São Pedro após a morte de Cristo, a mim foi garantida autoridade espiritual sobre esse mundo. Sua língua vil e suas feitiçarias não têm efeito diante da magnificência do Senhor.

Era aquele o poder de um papa? Abbadon indagava se aquilo fora uma armadilha aprontada por Lazarus Grimm para livrar-se dele. Que poder absurdo e descomunal era aquele, que fazia a própria boca das trevas se calar em um só gesto? Sentiu então seu corpo pesar e caiu com os joelhos, submetido a uma energia inexplicável. A olho nu não conseguia enxergar nada de extraordinário, mas sentia uma presença estranhamente familiar ao seu redor.

Logo surgiram de portas ocultas no saguão inúmeros homens vestidos como bispos, carregando em suas mãos tochas. Os bispos, quatro no total, cercaram Abbadon e com as tochas traçaram um circulo ao redor do anjo caído.

- A principal desvantagem de possuir um corpo físico não são os ferimentos que podem ser provocados, já que seu poder é capaz de resisti-los. –o velho homem santo aproximou-se, apoiado em um dos bispos, cada passo dificultoso franzindo as sobrancelhas como quem sente dor. Diante de Abbadon, o velho atravessou seu frágil braço pelas chamas e tocou a fronte do inimigo, recitando palavreados em aramaico. –A grande desvantagem é que posso exorcizá-lo, e sem seu corpo, não passará de um vulto!

O antigo anjo negro amaldiçoou sua estupidez... Quisera ele ter menos autoconfiança e ter planejado melhor sua vinda ao Vaticano! Como poderia desconfiar que um humano, um homem velho e doente, tinha a sua disposição tamanho poder? Subestimara os homens pela segunda vez... E pela segunda vez pagava pelo seu erro. Sentia que tinha poucos segundos de existência antes que se transformasse em uma sombra...

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